Gazeta do Povo
Óbitos no trânsito superam estatísticas de outras mortes violentas, mas responsáveis por acidentes dificilmente são condenados
Embora seja mais fácil morrer em decorrência de acidente de trânsito do que por outro tipo de morte violenta no Paraná, a gestão da segurança pública privilegia mais o combate ao segundo tipo de ocorrência. Os crimes de trânsito seguem uma rotina que tende à impunidade. Em razão da falta de efetivo, as delegacias dão prioridade aos homicídios que não acontecem no trânsito. Laudos técnicos do Instituto de Criminalística e Instituto Médico-Legal atrasam a conclusão de inquéritos e possíveis responsáveis por óbitos no trânsito não são sequer denunciados ou têm a culpa comprovada. E, por fim, raras são as condenações no trânsito por dolo eventual – quando se assume o risco de matar.
Em 2007, a cada 100 mil habitantes, 30,4 morreram em ocorrências relacionadas a transporte, enquanto 29,5 perderam a vida de forma violenta em situações não ligadas ao trânsito, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mesmo assim, apenas Curitiba tem uma delegacia especializada em trânsito. Mas nem assim o distrito dá conta de atender todos os casos deste tipo ocorridos na capital paranaense.
Em agosto de 2008, o casal João Batista e Tereza Chalamai dos Santos viu o filho Flávio, de 21 anos, perder a vida em um acidente de trânsito a poucas quadras de sua residência, em Pinhais, na região metropolitana. O jovem retornava da casa de sua namorada de moto e se envolveu em um acidente com um caminhão. De acordo com as testemunhas, o caminhão teria furado a preferencial, sem tempo para o motociclista frear. Na delegacia do município, o boletim de ocorrência considera o caso como homicídio culposo, baseado no relato do motorista de caminhão e de um dos investigadores. Segundo o documento, Flavio teria caído da moto dez metros antes do caminhão, sendo atropelado.
Como a família e condutor do caminhão apresentam versões distintas, apenas a perícia do Instituto de Criminalística (IC) e do Instituto Médico-Legal (IML) poderia tirar a dúvida sobre qual versão está mais próxima da realidade. Mesmo mais de dois anos após o acidente, porém, a promotoria de Pinhais não consegue fazer a denúncia em razão da falta dos laudos. É a segunda vez que o processo chega às mãos da promotora Mônica Helena Derbli Baggio, da 1ª Promotoria de Pinhais, sem que os documentos estejam anexados. Faltam o levantamento do local de morte e o laudo sobre os dois veículos envolvidos no acidente, especialmente a motocicleta.
Em casos assim, a perícia é fundamental para se comprovar como aconteceu o acidente. “É possível saber as circunstâncias, se houve frenagem e quem teria sido o causador da ocorrência”, revela Mônica. Ao tomar conhecimento dos “buracos” do inquérito, a promotora enviou ofício ao IC solicitando a conclusão da perícia em um prazo de até 30 dias.
De acordo com Mônica, a falta de laudos para formalizar a denúncia não é exclusividade da família Chalamai: ocorre em grande parte dos casos. “Falta a documentação do IML e do IC com bastante frequência”, conta. “Esses documentos são insubstituíveis”, diz. É que a perícia é a principal arma para mudar a acusação de culposo para doloso. Conforme Mônica, em grande parte dos casos – não só nos de trânsito –, essa falta de laudos deixa os promotores de mãos atadas.
“Nem sempre conseguimos chegar ao autor, especialmente quando não se dispõe de testemunhas ou meios para visualizar o acidente”, admite Armando Braga, titular da Delegacia de Delitos de Trânsito (Dedetran) de Curitiba. “Não significa que não nos importemos, mas não conseguimos ser eficientes”, diz.
Em Curitiba, a delegacia de trânsito deveria investigar todos os casos de acidentes de trânsito sem autoria conhecida. Nas situações cujo responsável se apresenta ou é identificado, o caso pode ser encaminhado ao distrito da área, à exceção das ocorrências mais notórias, como o acidente com o ligeirinho que matou duas pessoas e feriu 34, no ano passado.
O motivo da ineficiência, na avaliação do delegado, é a falta de mão de obra para investigação: 2 delegados, 3 escrivães e 16 investigadores. Em 2010, a delegacia tratou de 3.675 casos. Cada investigador, no ano passado, seria, em tese, responsável por 230 inquéritos. O que significa dizer que, contando os dias úteis do ano, cada investigador teria o tempo, em média, de apenas um dia de trabalho para resolver cada caso. “O governador [Beto Richa] e o secretário de segurança [Reinaldo Cesar] se comprometeram com o aumento do efetivo da Polícia Civil como um todo”, afirma Braga, com expectativa. Segundo análise do Tribunal de Contas, o Paraná tinha 3,6 mil das 6,5 mil vagas da Polícia Civil em aberto: um déficit de 45% gerado pela não reposição de aposentadorias e exonerações.
Se na delegacia especializada há dificuldade para se investigar todos os crimes de trânsito sem autor conhecido, imagine a rotina de uma delegacia comum, cuja responsabilidade vai dos mais variados tipos de homicídios, passando pela violência contra a mulher, até os crimes de trânsito. “O homicídio doloso [fora do trânsito] recebe prioridade em relação ao [que acontece no] trânsito. Não é nossa intenção, mas tenho falta de pessoal para investigar tudo que acontece aqui”, relata o delegado Fábio Amaro, da delegacia de Pinhais.
A confirmação de que o trânsito se encontra no segundo escalão da segurança pública é mostrada com a falta de dados. Em seis delegacias da região metropolitana consultadas, apenas duas contavam o número de crimes de trânsito. Além de Pinhais, os responsáveis pelos distritos de Fazenda Rio Grande, Colombo e São José dos Pinhais não souberam informar os números de homicídios de trânsito. A justificativa é de que os distritos passam por mudanças de delegado e sofrem com a falta de efetivo.
No entanto, o delegado Fábio Amaro, de Pinhais, confirma que a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) exige apenas a contagem de homicídios dolosos causados por armas de fogo e branca ou agressão, o que pode influenciar as delegacias a não manter uma estatística de crimes de trânsito. Na prática, para que o caso relacionado a morte no trânsito receba mais atenção, Amaro confirma a necessidade da cobrança dos parentes. “Depende de a família vir conversar com o delegado e pedir pelo andamento do inquérito. Nós entendemos a dor pela qual passam essas famílias”, afirma.
Em Araucária, a delegacia criou um método para especificar os homicídios, incluindo as ocorrências de trânsito. Conforme o delegado Aroldo Luiz Vergueiro Davison, 11 casos foram registrados no município em 2009. “Nós criamos uma subdivisão do cartório geral que facilita a obtenção de dados”, afirma Davison. Mas o número mostra uma subnotificação dos registros. De acordo com o Departamento de Trânsito do Paraná (Detran-PR), o município teve 763 acidentes, deixando 312 feridos e dois óbitos no local no mesmo período. Em Piraquara, a situação se repete. O delegado Osmar Feijó considerou apenas um caso de homicídio no trânsito em 2009. Os dados do Detran, porém, mostram que a cidade teve seis mortes em um universo de 157 acidentes. A reportagem entrou em contato, mas a Sesp não se manifestou sobre o assunto.
Colaborou Gabriela Campos
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